A abusividade da cláusula de tolerância no prazo para a entrega de imóveis adquiridos na planta


Fernando César Herling Valério* 

O aquecimento do mercado imobiliário nos últimos anos trouxe consigo consequências negativas, como os frequentes atrasos na entrega de unidades imobiliárias. A maior parte desses atrasos pode ser explicada pela falta de preparo das construtoras para os novos tempos de demanda em alta e com insuficiente mão de obra para atender a mesma. Sabedoras disso, muitas empresas lançam mão de cláusulas contratuais que preveem a prorrogação de prazo para entrega das obras, mas que vêm sendo progressivamente rechaçadas pelo Poder Judiciário.

Esses dispositivos justificar-se-iam quando houvesse real motivo para o atraso, diante da ocorrência de caso fortuito ou de força maior, ou seja, situações dentro de razoável grau de imprevisibilidade. Outra situação possível para embasar a aplicação de tal cláusula seria a culpa exclusiva do adquirente, isto é, quando este pratica ou deixa de praticar ato que efetivamente concorra para retardar a entrega do imóvel.

Embora essas cláusulas tenham por finalidade as citadas situações excepcionais, o que se vê atualmente é que os empreendedores as utilizam para justificar atrasos de toda sorte, cuja origem invariavelmente está na falta de planejamento dos mesmos.

É comum a previsão de tolerância em 180 dias para a entrega do imóvel adquirido "na planta", ou seja, não concluído, inapto para a ocupação. Todavia, encontram-se casos em que o prazo é de 270 dias, ou até mesmo os previstos em dias úteis, o que, na prática, mascara uma prorrogação ainda maior, superior a 1 (um) ano.

Diante do sistema jurídico-constitucional brasileiro, esse tipo de dispositivo contratual a priori não se apresenta como ilegal. O que repele sua legalidade é a não conformação aos princípios calcados na Constituição Federal e em especial na legislação civil e de defesa do consumidor. De forma resumida, esses princípios conferem ao consumidor proteção especial em relação aos fornecedores de produtos e serviços.

Pela antiga sistemática, o consumidor era visto pelo legislador e pelo julgador como um ente em situação de igualdade com o contratado para lhe fornecer produtos ou serviços, independentemente do tamanho e do grau de complexidade do negócio em questão e do poderio econômico das partes envolvidas.

Exemplificando, atualmente é inconcebível pensar e resolver os conflitos perante um contrato para reparos em roupas firmado com costureira microempresária da mesma forma que fazemos quando estamos diante de um negócio como estamos a tratar, contraído com grande construtora. Embora as características básicas permaneçam as mesmas do início do Mercantilismo, séculos atrás, não se duvida que todas as demais mereçam tratamento diferenciado pelos diversos ramos científicos que os estudam. Com o Direito, não é diferente, com a lei e o judiciário adequando-se aos novos tempos.

A legislação civil historicamente considerou todas as relações de consumo de forma igualitária, como simples operações de compra e venda. Ocorre que, com o aumento populacional, a crescente migração das áreas rurais para as urbanas e o desenvolvimento de tecnologias de transporte e de comunicação, criou-se campo fértil para a prosperidade de negócios massificados, em contratos conhecidos como "de adesão", exemplo dos que são os relativos às aquisições de imóveis na planta perante a construtoras. Nesses negócios, há uma subtração da relação pessoal comprador/vendedor em favor de uma forma mais ágil para a consecução dos negócios. Entretanto, nesse tipo de contrato não há margem de discussão por parte do adquirente, que deve aceitar os seus termos ou não. Como não há alternativas no mercado, normalmente ele se vê forçado a concordar, a "aderir" ao contrato.

Visando conferir equilíbrio ao contrato, o Estado promoveu a defesa do direito do consumidor, oferecendo mecanismos para a proteção dos adquirentes, controlando e rechaçando cláusulas abusivas impostas pelos empresários que notoriamente encontram-se em posição de hipersuficência na relação contratual, ou seja, devido ao seu poderio econômico, dispõem de corpo técnico para planejamento, execução e defesa do negócio e recursos para a aquisição de insumos a melhores preços, dentre outros fatores.

Em vista disso, no caso presente, muitas das construtoras, como dito, acabam impondo práticas abusivas, como a que prevê a taxa de corretagem como obrigação do adquirente, bem como o do chamado Serviço de Assessoria Técnica Imobiliária (SATI).

No caso em discussão, revestem-se de abusividade as cláusulas que concedem prorrogação de prazo para a entrega da obra, justamente por se constituir em faculdade para o construtor, sem previsão de penalidade para o mesmo, ao passo que esse benefício não é concedido ao comprador, que terá, pelo contrato, que arcar com severas consequências se atrasar com suas obrigações.

Esse desequilíbrio contratual faz com que essa cláusula seja considerada ilegal, pois é abusiva à luz do Código de Defesa do Consumidor, que, como dito, está fundado nos preceitos da Constituição e amoldado à legislação civil.

Embora seja cristalina essa proteção na lei, nem sempre assim o foi para a doutrina e para a jurisprudência. Felizmente, com o passar do tempo, intérpretes da lei e Judiciário progressivamente convencem-se dessa tese, refutando o entendimento de que se trata de um mero negócio civil, em que os contraentes encontram-se em igualdade de condições, como se fosse, por exemplo, uma simples compra e venda de veículo usado realizada entre pessoas físicas.

Juízes e desembargadores vêm se inclinando por reconhecer a abusividade da cláusula de tolerância de prazo para a entrega dos imóveis, ao conceder igual prazo ao adquirente para pagamento de suas prestações e para condenar os empresários que usam desse artifício ao pagamento de indenizações aos adquirentes, pelos danos materiais e morais causados a estes. Cabe, portanto, aos compradores socorrerem-se à via judicial para obterem a devida reparação.

___________
*Advogado, OAB/SP nº 339.816, atua na Canto Advogados e Consultoria Jurídica. Artigo publicado em 25 de julho de 2.014.